domingo, 24 de novembro de 2013

A mais singular das aves.


   Não é o uirapuru, quetzal ou ave-do-paraíso. Não é uma virtuose musical. Nada de canto bem elaborado, sem trinado, nem escorrido, nem estalado, apenas cróóó!
Não há uma ave  tão enigmática quanto o corvo (do latim Corvus). É um conjunto de aves pertencente à família zoológica Corvidae de ampla distribuição mundial, principalmente em regiões temperadas.  São aves muito inteligentes e possuem hábitos peculiares que incluem a necrofagia. As plumas de um preto, meio iridescente veste o animal tornando-o a mais sombria das aves. De fato, em muitas culturas, o corvo é associado à magia. A sua cor negra para muitos significa o vazio, reinício, criação. Não necessariamente relacionado ao mal.
Na Europa medieval era considerado portador de maus presságios, assim como a nossa brasileiríssima coruja rasga-mortalha, que segundo a tradição popular, o canto na noite sobre uma casa anuncia a morte de um membro da família.
O seu canto para os falantes do latim parecia com a palavra CRAS (amanhã). Que a igreja católica encarava como uma afronta à conversão de pecadores procrastinantes, seguidores do lema do corvo “[conversão ao cristianismo, só] amanhã, amanhã!”. Tanto que nosso querido Santo Expedito é ilustrado pisoteando a ave pronunciando seu último “CRAS” e segurando uma lapa de uma cruz escrita “HODIE” = hoje. A bichinha foi então morta porque estava tentando procrastinar a conversão do então legionário romano Expedito (gostaria de ver o encontro de Santo Expedito com São Francisco de Assis, protetor dos animais). Mas para a igreja católica, o corvo também foi de serventia. Segundo a tradição, São Bento foi salvo por um corvo que lhe tomou um pão envenenado.



 
Santo Expedito pisando no corvo e São Bento com seu corvo heroi.


Nas escrituras hebraicas da bíblia, o deus  יהוה(YHWH, Yaweh,Yawah)enviou corvos הערב (haorev, ‘orebh) para alimentar seu profeta Eliseu. É a primeira ave a ser citada na bíblia, quando Noé soltou primeiramente um corvo para saber se águas do dilúvio haviam baixado. O corvo também foi citado por Jesus quando disse: "Considerai os CORVOS, que não semeiam nem ceifam; não têm despensa nem celeiro; contudo, Deus os alimenta. Quanto mais não valeis vós do que as aves!", e em Provérbios, os corvos têm predileção pelos pecadores: "Os olhos de quem zomba do pai e, zombando, nega obediência à mãe, serão arrancados pelos CORVOS do vale, e serão devorados pelos filhotes de abutres".

Na mitologia grega, o corvo falava e era branco, sendo a ave sagrada do deus Apolo. O corvo foi enviado para buscar água numa taça. O corvo demorou e colocou a culpa na Hidra. Apolo num acesso de ira jogou o corvo, a hidra e a taça aos céus, transformando-os em constelações e como castigo, o corvo nunca alcança a taça (sede eterna) e agora sua plumagem é preta e seu canto desagradável.

Constelações do Corvo, da Taça e da Hidra. O corvo foi condenado a ter sede eterna, nunca alcançando a Taça.




Na mitologia nórdica, dois corvos Huginn (pensamento) e Muninn (memória) são os mensageiros do deus Óðinn (Odin). Eles percorrem Miðgarðr (Midgard, o mundo dos homens) e como belos fofoqueiros contam tudo o que viram a Odin

Representação de Odin com os corvos Muginn e Muninn (que representam o princípio da criação) e os lobos Geri e Freki (o princípio da destruição).



Na cultura dos povos celtas, os corvos eram animais sagrados. Variações de uma deusa chamada de “Corvo de batalha” (em gaulês Cathubodva, em gaélico Badb Catha) era venerada como símbolo da guerra, fertilidade e sexualidade.

 
Representações da deusa celta relacionada ao corvo.



Diversos mitos dos povos asiáticos apresentam uma ave de três pernas representando o sol. A mais difundida é a xintoísta, no Japão conhecido como YATAGARASU (八咫 yata = de grande porte e 烏 karasu = corvo. Mensageiro da deusa do sol Amaterasu, representa a intervenção divina nos assuntos humanos. Os japoneses utilizam amplamente essa lenda na sua cultura como sendo a ave que conduz à vitória, baseado em seus mitos. Por isso, a ave aparece no escudo da Associação de Futebol do Japão segurando uma bola. No card game Yu-Gi-Oh!, uma carta chamada Yata-garasu que combinada com outras especiais leva à vitória automática. Há um personagem em Digimon, Yatagaramon que é baseado em Yatagarasu. Em naruto os corvos são utilizados no genjutsu de Itachi Uchiha, que propositalmente tem como Amaterasu como nome de uma de suas técnicas. Além disso, a ave tripé também aparece como uma invocação de um dos caminhos da dor de Pain.


                                         Escudo da Associação de Futebol do Japão.



                                                    A carta Yata-Garasu de Yu-Gi-Oh!



                                                    O digimon Yatagaramon.


                                              Itachi Uchiha e seu genjutsu de corvos.


                        Corvo de três pernas, invocação do quarto Pain (caminho animal).

No ocidente atualmente, as propriedades místicas dos corvos continuam sendo amplamente utilizadas no entretenimento.  Em 1994, os quadrinhos de James O’Barr de nome “The Crow” (O Corvo) ganham uma versão cinematográfica. Na estória, o protagonista que foi assassinado volta do mundo dos mortos guiado por um corvo (e assumindo o nome da ave) em busca de vingança. Curiosamente, o ator Brandon Lee, que interpretava O Corvo, morreu em um acidente de gravação antes de ser terminado o filme.


Os corvos são amplamente utilizados (dá até raiva) nas “Crônicas de Gelo e Fogo” (adaptado à TV como “The Game of Thrones”)do estadunidense (americano não,  a América não são apenas os Estados Unidos, contrariando minha querida Solanja dos Aviões do Forró: “sou brasileiro e sou americano”) George R. R. Martin. “A Feast for Crows” (Festim dos Corvos) é o quarto dos sete volumes do romance.  Brandon Stark na série também está ligado a um corvo de três olhos, simbolizando a capacidade do garoto aleijado, Brandon, transportar sua mente e vontade através de animais.




O corvo de três olhos de Brandon Stark.


Seria quase infindável se continuasse a falar da importância do corvo na história antiga e atual, mas por hora vou encerrar com o poema The Raven (também significa corvo em inglês) de Edgar Allan Poe, adaptado ao português por Fernando Pessoa:


Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo, "Nunca mais".

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