Não é o uirapuru, quetzal ou ave-do-paraíso. Não é uma
virtuose musical. Nada de canto bem elaborado, sem trinado, nem escorrido, nem
estalado, apenas cróóó!
Não há uma ave tão
enigmática quanto o corvo (do latim Corvus). É um conjunto de aves
pertencente à família zoológica Corvidae de ampla distribuição mundial,
principalmente em regiões temperadas. São
aves muito inteligentes e possuem hábitos peculiares que incluem a necrofagia.
As plumas de um preto, meio iridescente veste o animal tornando-o a mais
sombria das aves. De fato, em muitas culturas, o corvo é associado à magia. A
sua cor negra para muitos significa o vazio, reinício, criação. Não
necessariamente relacionado ao mal.
Na Europa medieval era considerado portador de maus
presságios, assim como a nossa brasileiríssima coruja rasga-mortalha, que
segundo a tradição popular, o canto na noite sobre uma casa anuncia a morte de
um membro da família.
O seu canto para os falantes do latim parecia com a palavra CRAS
(amanhã). Que a igreja católica encarava como uma afronta à conversão de
pecadores procrastinantes, seguidores do lema do corvo “[conversão ao
cristianismo, só] amanhã, amanhã!”. Tanto que nosso querido Santo Expedito é
ilustrado pisoteando a ave pronunciando seu último “CRAS” e segurando
uma lapa de uma cruz escrita “HODIE” = hoje. A bichinha foi então morta
porque estava tentando procrastinar a conversão do então legionário romano
Expedito (gostaria de ver o encontro de Santo Expedito com São Francisco de Assis,
protetor dos animais). Mas para a igreja católica, o corvo também foi de
serventia. Segundo a tradição, São Bento foi salvo por um corvo que lhe tomou
um pão envenenado.
Santo Expedito pisando no corvo e São Bento com seu corvo heroi.
Nas escrituras hebraicas da bíblia, o deus יהוה(YHWH, Yaweh,Yawah)enviou
corvos הערב (haorev, ‘orebh) para alimentar seu profeta
Eliseu. É a primeira ave a ser citada na bíblia, quando Noé soltou
primeiramente um corvo para saber se águas do dilúvio haviam baixado. O corvo
também foi citado por Jesus quando disse: "Considerai os CORVOS, que não
semeiam nem ceifam; não têm despensa nem celeiro; contudo, Deus os alimenta.
Quanto mais não valeis vós do que as aves!", e em Provérbios, os corvos
têm predileção pelos pecadores: "Os olhos de quem zomba do pai e,
zombando, nega obediência à mãe, serão arrancados pelos CORVOS do vale, e serão
devorados pelos filhotes de abutres".
Na
mitologia grega, o corvo falava e era branco, sendo a ave sagrada do deus
Apolo. O corvo foi enviado para buscar água numa taça. O corvo demorou e
colocou a culpa na Hidra. Apolo num acesso de ira jogou o corvo, a hidra e a
taça aos céus, transformando-os em constelações e como castigo, o corvo nunca
alcança a taça (sede eterna) e agora sua plumagem é preta e seu canto
desagradável.
Constelações do Corvo, da Taça e da Hidra. O corvo foi
condenado a ter sede eterna, nunca alcançando a Taça.
Na mitologia nórdica, dois corvos Huginn (pensamento) e
Muninn (memória) são os mensageiros do deus Óðinn (Odin). Eles percorrem Miðgarðr
(Midgard, o mundo dos homens) e como belos fofoqueiros contam tudo o que viram
a Odin
Representação de Odin com os corvos Muginn e Muninn (que
representam o princípio da criação) e os lobos Geri e Freki (o princípio da
destruição).
Na cultura dos povos celtas, os corvos eram animais
sagrados. Variações de uma deusa chamada de “Corvo de batalha” (em gaulês Cathubodva,
em gaélico Badb Catha) era venerada como símbolo da guerra, fertilidade
e sexualidade.
Representações da deusa celta relacionada ao corvo.
Diversos mitos dos povos asiáticos apresentam uma ave de
três pernas representando o sol. A mais difundida é a xintoísta, no Japão
conhecido como YATAGARASU (八咫 yata = de grande porte e 烏 karasu = corvo. Mensageiro da deusa do sol Amaterasu, representa a intervenção divina nos assuntos humanos. Os japoneses utilizam amplamente essa lenda na sua cultura como sendo a ave que conduz à vitória, baseado em seus mitos. Por isso, a ave aparece no escudo da Associação de Futebol do Japão segurando uma bola. No card game Yu-Gi-Oh!, uma carta chamada Yata-garasu que combinada com outras especiais leva à vitória automática. Há um personagem em Digimon, Yatagaramon que é baseado em Yatagarasu. Em naruto os corvos são utilizados no genjutsu de Itachi Uchiha, que propositalmente tem como Amaterasu como nome de uma de suas técnicas. Além disso, a ave tripé também aparece como uma invocação de um dos caminhos da dor de Pain.
Escudo da Associação de Futebol do Japão.
No ocidente atualmente, as propriedades místicas dos corvos
continuam sendo amplamente utilizadas no entretenimento. Em 1994, os quadrinhos de James O’Barr de
nome “The Crow” (O Corvo) ganham uma versão cinematográfica. Na estória, o
protagonista que foi assassinado volta do mundo dos mortos guiado por um corvo
(e assumindo o nome da ave) em busca de vingança. Curiosamente, o ator Brandon
Lee, que interpretava O Corvo, morreu em um acidente de gravação antes de ser
terminado o filme.
Os corvos são amplamente utilizados (dá até raiva) nas “Crônicas
de Gelo e Fogo” (adaptado à TV como “The Game of Thrones”)do estadunidense
(americano não, a América não são apenas
os Estados Unidos, contrariando minha querida Solanja dos Aviões do Forró: “sou
brasileiro e sou americano”) George R. R. Martin. “A Feast for Crows”
(Festim dos Corvos) é o quarto dos sete volumes do romance. Brandon Stark na série também está ligado a
um corvo de três olhos, simbolizando a capacidade do garoto aleijado, Brandon,
transportar sua mente e vontade através de animais.
O corvo de três olhos de Brandon Stark.
Seria quase infindável se continuasse a falar da importância
do corvo na história antiga e atual, mas por hora vou encerrar com o poema The
Raven (também significa corvo em inglês) de Edgar Allan Poe, adaptado ao
português por Fernando Pessoa:
Abri então a
vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e
nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum
cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar
solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de
Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e
nada mais.
E esta ave
estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene
decoro de seus ares rituais.
"Tens o
aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo
emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o
teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo,
"Nunca mais".
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