segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

O deus e a criança

  No embalo do ultimo conto que postei aqui, tomem mais um. Dessa vez é um bem simples, de umas ideias antigas que tive, com ajuda do Pain aqui do blog. Apreciem:


O deus e a criança




    A criança corria alegremente por entre as árvores, rindo cada vez mais enquanto se afastava do monastério onde morava. O bosque, tão vivo e cheio de cores, afastava de suas memórias o cinza que predominava no orfanato. Aquela era uma hora única no dia, quando irmã Sellene acabava dormindo em sua confortável cadeira de balanço, com o livro sagrado em seu colo.
  A maioria das crianças aproveitava essa brecha para ir brincar nos fundos do monastério, onde o grande e velho salgueiro estendia suas sombras frescas. Mas a pequena Niandra não se dava bem com as outras crianças. Elas eram más, e gritavam coisas horríveis sobre sua mãe, e sobre seu sangue amaldiçoado. Por isso, a pequena corria para o bosque. Aquele era um lugar sagrado, e as crianças eram proibidas de ir até ali, o que tornava Niandra a rainha da floresta, com os pássaros e os pequenos esquilos como súditos.
   Estar ali era sua felicidade. Corria atrás dos esquilos, cheirava o perfume das flores, admirava o canto dos pássaros, e rolava nas folhas secas que se amontoavam aqui e ali. E ninguém estava ali para repreende-la. Mas o lugar favorito de Niandra era um lago. Ficava bem no centro do bosque, em uma clareira rodeada por árvores altas e velhas. O lago, de águas cristalinas, era cheio de peixes, e a menina adorava ficar sentada, com os pés dentro da água, olhando os peixes nadando. Ficava por lá até o entardecer, quando tinha que voltar, a tempo de chegar antes da velha clériga acordar.
   Dessa vez não seria diferente. Já estava ansiosa por ver as águas com o sol refletindo, e corria apressada em direção ao lugar. Quando passou pelas altas guardiãs, e por fim entrou na clareira, levou um susto. Havia um homem alto, parado em pé perto do lago. Era muito alto, e Niandra sentiu um certo receio de se aproximar mais. De costas para ela, o homem não a percebeu, ao que a menina ficou imóvel, observando-o. Foi então que ela se deu conta de que não era uma pessoa normal. Sua pele era escura, como o céu a noite. Parecia que por baixo de sua pele, inúmeras estrelas pairavam, se movendo devagar e brilhando por todo seu corpo. Seus cabelos eram brancos, e pareciam ser feitos de fumaça, ficavam se mexendo de forma graciosa em várias direções.
   Niandra ficou encantada. Algumas das estrelas brilhavam mais que as outras, e observando, a menina teve a impressão de estar olhando para uma imensidão sem fim. O ser então a notou. Virou-se para ela. Seu rosto era sereno, parecia ser muito velho, mas também muito sábio. Seus olhos eram como olhar diretamente para o sol, eram brilhantes e profundos.
    A pequena menina, encantada, se esqueceu do medo, e chegou mais perto. Foi até a beira do lago, e, se sentando, disse, olhando para o ser fascinante:
– Eu gosto de vir aqui, e ficar olhando para o lago.
– É um lugar muito bonito – respondeu o ser, com uma voz profunda e triste – nunca estive aqui antes, mas quis parar para apreciar a beleza.
– Às vezes aparece um peixinho vermelho – ela continuou apontando para o interior do lago – mas eu nunca consegui pegar ele. É muito rápido.
– De onde você vem, pequenina? – O ser perguntou, e sentou ao lado dela
–  O monastério, subindo a colina.
–  Um orfanato?
–  É sim. Tem várias outras crianças lá. Mas eu não gosto delas. Elas são más.
– Por que diz isso? – O ser indagou, falando lentamente – elas te fazem mal?
– Elas não gostam de mim. Ficam me chamando de filha de bruxa. Às vezes, atiram coisas fedidas em mim.
– Aquele monastério é uma igreja, não é mesmo?
– É sim – respondeu a menina, olhando para o ser – vem cá, moço, o que você é? Nunca vi ninguém igual.
– Eu sou um ser do passado, minha criança. Teu povo escolheu me esquecer. Nem as lendas contam mais sobre minha existência. Meu nome é Ijhegar, sou um deus criador.
– Deus? – A menina perguntou, desconfiada – A irmã Sellene disse que só existe um deus, e que os outros são demônios mentirosos.
– Seu povo escolheu assim. Acreditam apenas em Vhynna, e desprezam todos os outros.
– Então existem outros deuses?
– Existem.
– Irmã Sellene é uma mentirosa então?
– Não, ela apenas não conhece a verdade. Seu povo ficou cego por conta dessas religiões, e as igrejas se tornaram o motivo de viver de muitos. E por conta disso, eles vão a guerra, para defender sua crença, contra a de um povo com crenças diferentes. Tudo isso me entristece.
– Me deixa triste também. Minha mãe acreditava em outra deusa.
– Qual?
– Tezra, acho que era assim que ela chamava.
– A deusa da vida – Ijhegar respondeu, com saudosismo – eu a conheci. Os elfos são o povo mais ligado a ela. Mas isso quer dizer que você não vivia nessa região?
– Não, eu morava bem longe daqui. E tinha muitos elfos perto da minha casa, eu lembro. Minha mãe fazia magias. Ela curava as pessoas.
– Como ela fazia isso?
– Com umas plantinhas cheirosas, e cantando. As pessoas ficavam boas, e todo mundo gostava dela.
– Ela era uma clériga de Tezra. A magia da vida retira a energia da natureza, para o bem. Entendo, por isso chamam sua mãe de bruxa.
– É. Os homens da igreja vieram, e levaram ela. Meu pai nunca quis me contar pra onde, mas a irmã Sellene me disse que ela foi queimada numa fogueira, pra limpar os pecados.
– Eu lamento, criança. Mas deve ser verdade. Seu povo não aceita outras crenças. Sua mãe foi uma grande mulher.
– Às vezes eu choro sabe? – Os pequenos olhos da menina começaram a ficar úmidos – sinto saudades de ver ela cantando. Ela nunca quis fazer mal a ninguém. Mas aí os homens da igreja exigiram que meu pai me entregasse, ou eles iam matar ele. Eles disseram que eu seria uma serva, para compensar pelos pecados da minha mãe.
– E ele aceitou?
– Ele não queria. Me abraçou, chorando e pedindo desculpa. Mas os homens eram grandes, e tinham armaduras. Ele teve que me entregar.
– Então, aí te trouxeram para cá.
– É. Aqui eles me ensinam essas coisas de deus sabe. E também, me limpam de meus pecados – a menina mostrou as marcas em seus braços – eu não gosto de ficar aqui. O senhor devia sair também, se descobrem que tem outro deus aqui, vão ficar furiosos.
– Estou apenas de passagem, pequena, não se preocupe.
– É? O que veio fazer aqui?
– Um dragão vive por estas terras, e ele despertou. Vim até aqui convencê-lo a não fazer nenhum mal.
– E conseguiu? – A menina perguntou curiosa– eu nunca vi um dragão!
– Ainda não fui até ele. Pensei em primeiro falar com essas árvores. São antigas e sábias, e conhecem esse dragão melhor do que eu.
– Você fala com as árvores? – Niandra parecia muito empolgada – me ensina? Quero ter mais alguém pra conversar!
– Levaria muito tempo, menina. Lamento.
   Tempo. A palavra a fez lembrar de voltar. Já estava escurecendo, a irmã já deveria ter acordado. Ela seria castigada por isso. Levantou-se de repente, e com um certo espanto no rosto, começou a correr.
– Desculpe, eu tenho que voltar!
   Correu, na direção do monastério, deixando a entidade para trás. Sentia-se fascinada, mas triste. Nunca mais o veria por ali, e ainda teria que ficar de castigo, sem o jantar, trancada no quarto da penitência. Engoliu o choro e continuou correndo.
  Nem se deu conta de que havia entrado na clareira outra vez, e estava de cara com Ijhegar.
– As pessoas normais não podem me ver – explicou ele, se aproximando da menina – nem mesmo me ouvir. A muito tempo não tenho uma conversa tão agradável quanto essa, embora o assunto tenha sido triste.
– Eu também gostei – ela respondeu, confusa
– Não há dúvidas de que você é como sua mãe. Não deve voltar ao orfanato, a menos que queira. Posso te levar para ver o dragão. E depois podemos procurar por seu pai. Posso cuidar de você, se essa for a sua vontade.
   A menina não soube o que responder. Correu e abraçou a entidade, chorando. Ela não imaginava, mas Ijhegar também estava chorando. Chorava por se lembrar do amor que as pessoas sentiam por ele e seus irmãos, nos dias de glória. Mas a dor do esquecimento o fizera esquecer de tudo.
   A pequena Niandra agarrou firme a mão do deus esquecido, e foram caminhando na direção oposta à do orfanato. Ela não seria vista por aquelas pessoas em um bom tempo. Naquela tarde, os mais sensíveis perceberam que algo havia acontecido. Mas não imaginavam que havia sido algo tão simples.
   A ingenuidade de uma criança havia conquistado o quebrantando coração do deus antigo. Mas aquela era uma entidade simples, repleta de bondade e compaixão. Levou a criança consigo, a fim de cria-la. O resultado disso, nem mesmo ele imaginara.
   O nome Niandra estaria destinado a ecoar em toda a criação. Por toda a eternidade.



 Três contos em um período curto de tempo. Agora deve demorar até ter mais...

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